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quinta-feira, 16 de junho de 2011

De mitos e partos

"Estive pensando em quanto a gente anda para desejar "só" isso", disse Jobis Estevão, mãe, fêmea e mamífera. Rainha.
Veio-me uma imagem das mulheres que nunca pensaram em filhos e, portanto, nunca imaginaram como seriam seus partos. Elas já nascem predestinadas a "quererem" uma cirurgia, intenvenções, tecnologia, medicamento... LEmbrei-me de como é não saber, ignorar. Como é delegar poder a uma cultura, me submeter sem nem ter consciência disso. Lembrei-me como eu era. Lembrei-me o quanto eu li, vi, ouvi, aprendi, me surpreendi até aqui. E ficou ecoando na minha cabeça todas as coisas que a gente vai jogando pra fora e dizendo com sofrimento: "isso eu não quero", "isso eu não preciso", "isso é um absurdo", "isso jamais"... e com o mesmo sofrimento vamos lutando para conseguir adentrar as cavernas profundas de nosso ser e buscar lá no mais abissal interior a fêmea mamífera que é capaz de parir, mesmo contra a correnteza.
Lembrei-me de Inanna. Me lembrei de Ereshkigal. Ambas Deusas sumérias muito antigas. Lembrei-me do mito da descida da Deusa, que me ensinou uma lição que continuo a aprender cada vez que o revisito. Elas eram irmãs, duas metades, contrapartes, uma só. Ereshkigal representava o aspecto do feminino que foi relegado ao profundo submundo pelo patriarcado. Conta a lenda que ela foi inúmeras vezes estuprada por seu marido, Enlil, e cada vez ele usava um disfarce diferente. Os demais Deuses então o expulsaram da terra e ele foi residir no Submundo. Ela, grávida, o segue até seus domínios, como a cumprir seu triste destino. Ela passa a reinar no Submundo, enquanto gesta solitariamente. Inanna por sua vez não tem essas características. Inanna é jovial, alegre, livre, mas a Deusa dos Céus ama sua irmã e por isso, dolorida de saudade,  parte atrás dela em direção ao submundo. Então começa uma jornada muito difícil. Inanna, Deusa, Rainha, atravessa sete portais, e em cada um deles ela precisa de despir de uma insígnia. Tudo vai ficando para trás, suas jóias, suas roupas, sua coroa, suas sandálias, seus adornos... até que atravessa o último portal nua, como todos ao morrer, como igual. Desprovida daquilo que a identifica como majestade, ela se vê diante de Ereshkigal, a quem encontra em profundo estado de amargura, culpa, dor e desgosto, prestes a parir, sentindo as dores do parto. O olhar de Ereshkigal é o olhar da morte. Nada do que Inanna aprendeu em vida serve ali, diante da morte, nada lhe resta senão se render. Ela então recebe a fúria de sua irmã. Ereshkigal lhe lança toda sua ira, lhe chicoteia o corpo e lhe fere a carne com toda sua raiva de mulher sofrida, isolada, presa, tolhida, subjugada, invejosa. Tudo o que resta de Inanna é seu corpo nu, ferido e pendurado em um gancho como um pedaço de carne inerte. Ereshkigal então olha o corpo de sua irmã sem vida e pensa que esse foi o preço que ela escolheu pagar por seu amor e devoção a ela. A si. E é então que o aspecto escuro do feminino toma consciência da validade de sua experiência de dor. Ao honrar o sofrimento e validar essa experiência, ela transforma a destruição em generosidade e Inanna novamente vive. Ereshkigal finalmente pariu. Pariu uma nova Inanna, pariu a si mesma.
Inanna na verdade desce ao submundo atrás de sua linhagem, sua herança, sua origem. Ela desce para as profundezas de si mesma, para encontrar suas partes exiladas, recuperá-las e integrá-las na totalidade do que é. E quando ela retorna, ela não mais precisa destas insígnias.  E ela o fará quantas vezes for necessário.

Lembrei-me. Eu estou descendo. É solitária a descida. É escuro. Sinto medo. Minhas insígnias vão ficando para trás...
Mas eu vou parir.

2 comentários:

  1. Lindissimo. Essa história é muito tocante para mim em especifico. É muito bom quando a gente consegue se situar nesses processos.

    Boa sorte minha amiga.
    bjs

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  2. Uma nova Ana esta para nascer. Vejo quanto poder esta esta prestes a descobrir! Seja bem vinda ao novo mundo. beijos

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